quinta-feira, 5 de março de 2009

Marca na testa

Essa é daquelas que você vê na infância, fica impressionado e não dorme direito.

Décadas depois, graças ao Google/Youtube, este grande HD externo da memória humana, tem a chance de assistir de novo.
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Eu devia ter meus 7 ou 8 anos. Na época, passava aquela série "Além da Imaginação" na Globo. Episódios assustadores, histórias de realismo fantástico. Uma delas me marcou muito:

Ano 2104. Um sujeito é condenado a 1 ano de invisibilidade.

Dois guardas aplicam-lhe uma queimadura na testa. Agora, Mitchell Chaplin tem uma "verruga gigante" à mostra, o sinal de que todos os cidadãos devem ignorá-lo.

No início, Mitchell não parece se importar. Aos poucos, percebe que não consegue realizar nem a mais rotineira das atividades. Pede café num restaurante, puxa papo no metrô, fala alto na biblioteca, mas sempre com o mesmo resultado: é tratado com se não existisse.

Mitchell fica angustiado. Ninguém ousa dirigir a palavra. Como no Big Brother do livro 1984, todos os cidadãos são vigiados o tempo todo. Se alguém desobedecer à lei, enxergando o homem invisível, robozinhos voadores o sentenciarão ao mesmo destino de exclusão.

Nem mesmo o encontro com outro punido livra Mitchell da sina do ostracismo. Após trocarem olhares, o homem prefere não se comunicar para não correr o risco de ter a pena extendida.

O momento mais dramático é o encontro com um cego. Carente de qualquer vestígio de atenção, o protagonista encontra alívio ao conversar com o deficiente visual. Aquelas palavras lhe devolviam a existência. Mas rapidamente, um 'cidadão' sussurra a verdade no ouvido do cego. Ofendido, trapaceado, se afasta. Mitchell estava invisível de novo.

Chapéu para cobrir a marca? É uma de suas tentativas desesperadas. Mas o chapéu começa a queimar no simples contato com a cicatriz na testa.

Invisibilidade não permite disfarces.

365 dias passam. Chegou o dia de remover o sinal. Mitchell vive recluso em casa, abandonado em si mesmo. Não fosse a alforria, mofaria ali com móveis e livros esquecidos. Úmidos, com fungos, corroídos pelo tempo e pela indiferença.

A marca é eliminada da testa. Sem sequelas. Mitchell está livre para ser visto de novo.

Quatro meses depois, uma moça chora, implora atenção. Ela tem o sinal na fronte. A mesma mulher que o havia ignorado tempos atrás. O protagonista dá as costas, tenta se afastar, mas não resiste às súplicas da moça.

Resolve abraçá-la e confortá-la, sob olhares revoltados dos robozinhos voadores, que anunciam "Atenção. Você está condenado de novo!!!"

- Você não é invisível! Eu consigo te enxergar!, são as últimas palavras de Mitchell no episódio.
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Para SER, não basta existir. É preciso que os outros percebam.

A visibilidade só existe a partir do momento em que os demais a reconhecem.

Desde a infância, quando vi o episódio, até hoje, fico pensando quantas vezes conheci um invisível mas não o presenteei com sua existência.

O feioso sem amiguinhos no jardim de infância.
O servente uniformizado limpando os corredores do colégio.
A gordinha na festinha da escola.
O vendedor de chicletes andando no trânsito parado.
O músico que canta e toca covers nos bares noturnos.
O office boy que entra no elevador lotado.
O catador de sucata puxando o carrinho cheio de entulho.
O pré-adolescente maltrapilho e de chinelos no shopping.
O mendigo da minha rua.

Por todas as vezes que, por ventura, eu tenha deixado de afirmar a identidade dessas e de outras pessoas;

- Eu vejo vocês.
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pra quem quiser ver o episódio:
www.youtube.com - To See the Invisible Man (Twilight Zone)

17 comentários:

Rach disse...

uou. esse post tá meio sem comentários. no bom sentido, é claro.

Anônimo disse...

Querido sobrinho,
em primeiro lugar: que memória;em segundo lugar: que interessante...
eu recebi um email outro dia falando exatamente isso ,só que real.É uma tese de doutorado de um psicólogo social da USp, em que ele trabalhou por 8 anos de gari pelas ruas da cidade universitária. E ele constata o quanto vc é invisível para as pessoas quando não está vestido como os outros. Ele conta que professores da usp que chegavam até abraçá-lo nos corredores da Usp nem olhavam para ele quando ele estava vestido de roupa laranja como gari.
Acho que esse filme realmente deve ter sido interessante( eu não o vi), mas muito verdadeiro.
E aí fica a reflexão: por isso que ninguem dá atençao às classes oprimidas ,tais como os mendigos, os deficientes, os office-boys e etc,etc,etc,etc??
Obrigada por ser essa pessoa maravilhosa que vc é e fazer um monte de gente ler seus blogs inteligentes.

Anônimo disse...

Puxa, André B.!... Hoje você se excedeu! Desde que conheci seu blog eu o acompanho, sou aquela avó da menininha que descobriu tardiamente que nem Papai Noel existia nem o coelhinho da Páscoa,... lembra do meu comentário?... Na época (porque ainda não sei direito tudo de computador, sou meio burra ainda) saí como "Anônimo". Não sou "Anônimo", sou Zelma Rabello para o caso de eu errar de novo...
Mas quer dizer que você já era sensível desde criancinha?... Que legal! Eu também! E estou emocionadíssima com esse seu post. E mais do que ver você... olhei-me num espelho. Obrigado!

André B. disse...

Zelma,
claro que me lembro do seu comentário! Foi cheio de sensibilidade! Muito obrigado, mais uma vez, por voltar ao blog!
Todo mundo gosta de ser visto, reconhecido, valorizado. Um comentário destes me deixa muito lisonjeado. Saiba você, e espero que todos os leitores que vêm sempre aqui também saibam, que eu também vejo e valorizo muito o comentário de todos! Vocês, mais do que eu, fazem o blog existir. Não fosse por todos aqueles que prestigiam o blog, essas histórias todas estariam guardadas numa parte remota da minha memória. Muito obrigado!

Anônimo disse...

Que lindo, André! Você sabe q eu fico muito sensibilizada com esse tema...

Tem aquela história que ficou bem conhecida e que eu acho que mostra exatamente isso. O do estudante de psicologia da USP que resolveu se vestir de gari na faculdade, para escrever sua tese de mestrado sobre "invisibilidade pública".

Durante o tempo em que estava uniformizado, nem UMA pessoa reconheceu o menino. Nenhum amigo, nenhum professor, ninguém.

Ele trabalhou durante OITO anos como gari na USP para provar sua tese e nunca recebeu UM bom dia.

Numa entrevista ele diz: "Professores que me abraçavam nos corredores da USP
passavam por mim, não me reconheciam por causa do uniforme. Às vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se tivessem encostado em um poste, ou em um orelhão".

é triste demais...

beijao

Anônimo disse...

Tieta, só li agora seu comentário!
Essa tese mesmo que eu tava falando. Ele escreveu um livro chamado " Homens Invisíveis – Relatos de uma Humilhação Social". Deve ser muito bom.....Não sabia que tinha um filme!!

Beijao!!

Ƭ. disse...

é... pra refletir.

:)

Daniel Oliveira disse...

Oi. ótimo texto também vi esse seriado quando era criança, me marcou muito eu me lembro dele até hoje. parabéns pelo blog e forte abraço

Eduardo Delbem Neto disse...

Olá André, boa noite. Fico muitíssimo agradecido pelo seu post. Eu dei uma passada pelo Google pra saber o nome do filme e me deparei com seu post. Assisti, quando criança, e não conseguia achar para relembrar, daí achei aqui com você. Parabéns pela sensibilidade e que Deus te abençoe abundantemente em mais posts. Um abraço. Eduardo Delbem Neto.

Carlos Pires disse...

Muito bom! Segue o link do filme: https://www.youtube.com/watch?v=JSKKppfqQx0

Unknown disse...

Se lembra quando ele ri da sentença?
E da vez que ele vai ao banheiro das mulheres, elas todas nuas, mas não podem reagir e começam a chorar e ele se sente mal
tenho 51 anos
Forte abraço, fique com Deus!!!

Unknown disse...

Olá ! Como vc eu devia ter. Uns 7 anos quando vi! Fiquei tão impressionada e decidi procurar para rever o filme e tirar o medo ! Aí achei seu post! Quase 30 anos depois matei minha curiosidade. Obrigada

Anônimo disse...

Oi. Quero muito assistir, assisti na infância também. Pensei que fosse um filme, não achei disponível. Qual é o nome ? Obrigada

Anônimo disse...

Onde encontro esse episódio??

Anônimo disse...

Valeu! Estava feito louca procurando isso como se fosse um filme!
Lembrei por causa dos drones q temos hj em dia!
Muito obrigada 😘

Anônimo disse...

Tbm tô nessa faixa! Faço 50 esse ano ( 2024) e estava procurando esse " filme"!
Q bom q existem pessoas q disponibilizam essas relíquias!

Anônimo disse...

Mais um, que na infância viu e não achava. Já pensava até que estava alucinando. Muito obrigado.